A essencialidade dos grãos em CPRs e o equilíbrio entre credores e produtores rurais na recuperação judicial         

A recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO), no Agravo de Instrumento nº 5351886-98.2025.8.09.0090[1], trouxe importante contribuição para a compreensão dos limites entre o direito dos credores e a necessidade de continuidade da atividade dos produtores rurais em recuperação judicial.

No julgamento, a 6ª Câmara Cível, sob relatoria do Desembargador Jeronymo Pedro Villas Boas, reconheceu a essencialidade dos grãos vinculados a Cédulas de Produto Rural (CPRs) com penhor agrícola, protegendo-os de atos de constrição durante o período de suspensão legal (stay period).

A discussão girava em torno de uma situação recorrente no agronegócio: produtores rurais que, para viabilizar o custeio de suas safras, emitem CPRs garantidas por penhor agrícola. Quando esses produtores ingressam em recuperação judicial, surge o impasse: os credores podem executar as garantias e retirar os grãos vinculados à CPR, ou esses bens devem permanecer sob proteção judicial por serem essenciais à continuidade da atividade?

Até recentemente, muitos tribunais vinham entendendo que os grãos, por representarem o “produto final” da produção, não poderiam ser enquadrados como bens essenciais, já que não se tratavam de instrumentos de produção (como tratores, máquinas ou implementos agrícolas). A decisão do TJGO rompe com essa leitura restritiva, ao reconhecer que, no contexto do agronegócio, o produto agrícola é também o meio de sustento e de fomento à próxima safra, sendo indispensável à sobrevivência da atividade rural.

No voto vencedor, o Desembargador Jeronymo Pedro Villas Boas destacou que, embora as CPRs com penhor agrícola tenham natureza de garantia real, elas não se enquadram na exceção prevista no § 3º do art. 49 da Lei nº 11.101/2005, que exclui da recuperação judicial os créditos de proprietários fiduciários e arrendadores mercantis. Assim, esses créditos se submetem aos efeitos da recuperação, inclusive ao período de suspensão das execuções individuais.

O Acórdão também observou que o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no REsp nº 1.867.694/MT[2], já havia reconhecido que os créditos garantidos por penhor rural são concursais, ou seja, devem ser processados no âmbito da recuperação judicial, e não em execuções autônomas.

Com base nesse entendimento, o TJGO reforçou que a retirada dos grãos comprometia diretamente a capacidade produtiva dos devedores, o fluxo de caixa e o custeio das próximas safras, contrariando os princípios da preservação da empresa e da função social da atividade econômica (art. 47 da Lei nº 11.101/2005). Vejamos:

[…]20. A retirada imediata dos grãos, ainda que garantidos por penhor, reduziria sensivelmente a capacidade de produção da empresa e de fluxo de capital para o pagamento dos devedores, dada a multiplicidade de credores, comprometendo os objetivos da recuperação judicial e colocando em risco a própria atividade rural dos recuperandos, notadamente porque o produto colhido é essencial para o fomento das safras seguintes. 21. Assim, a venda ou retirada dos grãos — que constituem o resultado direto da atividade produtiva — implicaria inviabilizar o exercício da atividade empresarial, obstando o soerguimento e a reestruturação pretendida. 22. Sem a possibilidade de circulação dos bens produzidos, os recuperandos caminham em sentido oposto ao objetivo da recuperação, já que a restrição compromete o fluxo de caixa, a liquidez, a capacidade de custeio da produção e o adimplemento das obrigações assumidas. 23. Cumpre registrar que os grãos cultivados constituem a base de sustentação da atividade econômica dos recuperandos, representando o principal instrumento para a continuidade e crescimento do empreendimento. 24. Portanto, a fim de assegurar a efetividade dos princípios que norteiam a recuperação judicial — preservação da empresa, proteção dos trabalhadores e satisfação dos credores (art. 47 da Lei nº 11.101/2005) —, mostra-se adequado e necessário o reconhecimento da essencialidade dos grãos durante o período de soerguimento da empresa […]”. (Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, PROCESSO CÍVEL E DO TRABALHO -> Recursos -> Agravos -> Agravo de Instrumento, 5351886-98.2025.8.09.0090, JERONYMO PEDRO VILLAS BOAS – (DESEMBARGADOR), 6ª Câmara Cível, julgado em 19/08/2025 09:00:00)

Ao negar provimento ao agravo interposto pela credora Lavoro Agrocomercial S/A, o tribunal reafirmou a importância de equilibrar os interesses envolvidos. De um lado, o produtor rural precisa manter os meios necessários para honrar suas obrigações e sustentar o plano de recuperação, de outro, o credor não pode ser privado de suas garantias sem a devida proteção jurídica.

Nesse cenário, o reconhecimento da essencialidade dos grãos não implica a perda da garantia, mas apenas sua suspensão temporária durante o período de reestruturação, permitindo que o devedor continue produzindo e gere recursos para o pagamento futuro das dívidas. A medida assegura a efetividade da recuperação judicial, que deixaria de cumprir sua função se os bens indispensáveis à produção fossem retirados logo no início do processo.

A decisão goiana tem potencial para influenciar outras cortes estaduais e reforçar uma tendência jurisprudencial favorável à continuidade da atividade rural. Em um setor caracterizado por ciclos longos e forte dependência de crédito, garantir que o produtor mantenha o controle sobre sua produção durante o período de recuperação é essencial para viabilizar o soerguimento econômico e preservar empregos e contratos.

Para os credores, o caso evidencia a necessidade de atenção redobrada na estruturação das garantias. Avaliar o tipo de CPR emitida (financeira ou física), a modalidade de garantia e as previsões contratuais relacionadas à recuperação judicial pode reduzir riscos e litígios.

Já para os produtores, a lição é clara: buscar assessoria jurídica especializada desde a fase de contratação dos financiamentos é fundamental para evitar surpresas e assegurar a sustentabilidade da atividade em momentos de crise.


[1] Agravo de Instrumento, 5351886-98.2025.8.09.0090, Desembargador JERONYMO PEDRO VILLAS BOAS, 6ª Câmara Cível, julgado em 19/08/2025, disponível em: https://shre.ink/osd9

[2] Recurso Especial nº 1.867.694 – MT (2020/0067076-4), disponível em: https://shre.ink/ossR

Mayara Cristina de Souza Leite, estagiária de Direito (10º semestre – FMU) e integrante da equipe no Yuri Gallinari Advogados.