A aplicação do litisconsórcio unitário ao processo de recuperação judicial.

Introdução

O objetivo do trabalho escrito abaixo é demonstrar a motivação que é utilizada pelos operadores do direito para a aplicação do litisconsórcio ativo unitário aos processos de Recuperação Judicial, como meio de que um grupo econômico possa apresentar um único Plano de Recuperação Judicial, para uma relação de credores única, cujo conteúdo é deliberado em uma Assembleia-Geral de Credores para todos.

Para tanto, será preciso relembrar a natureza jurídica do Plano, passando por breves conceitos do direito contratual, especialmente sobre a liberdade de contratação entre as partes e, ao fim, relembrar todos os conceitos criados para a sua aplicação; os quais foram transformados em dispositivo legal pelo Projeto de Lei nº 4.558/2020.

A análise se dará, além da consulta pública existente em todos os Tribunais de Justiça e obras publicadas por conceituados doutrinadores da área, por meio de todo o conteúdo que foi criado e produzido ao longo dos anos para que seja possível a delimitação e as hipóteses em que o litisconsórcio nesses processos deve ser admitido ou não.

1. A natureza jurídica do Plano de Recuperação Judicial

Segundo Maria Helena Diniz, natureza jurídica é a “afinidade que um instituto tem em diversos pontos, com uma grande categoria jurídica, podendo nela ser incluído o título de classificação”[1].

No caso, o Plano de Recuperação Judicial tem natureza de contrato (espécie) e, consequentemente, de negócio jurídico (gênero), como preleciona Sérgio Campinho:

A concordata, na esteira do Decreto-Lei nº 7.661/1945, não exibia feição contratual. Sua natureza era a de um favor legal. Os credores a ela então sujeitos, os quirografários, não eram chamados a manifestarem suas vontades. Preenchendo o devedor os requisitos pela lei impostos, passava ele a fazer jus a esse favor, dirigindo ao juiz sua pretensão, que, por sentença, a deferia.

(…)

Na recuperação judicial prevalece a autonomia privada da vontade das partes interessadas para alcançar a finalidade recuperatória. O fato de o plano de recuperação encontrar-se submetido a uma avaliação judicial não lhe retira essa índole contratual. A concessão, por sentença, da recuperação judicial, não tem qualquer repercussão sobre o conteúdo do plano estabelecido entre as partes interessadas (devedor e seus credores), porquanto a decisão encontra-se vinculada a esse conteúdo. Com efeito, o controle judicial do plano de recuperação possibilita excluir eventuais objeções em face de sua validade. O procedimento de concessão judicial contribui para a redução das fontes de erros durante a sua celebração, bem como permite aos credores a oportunidade de verificar se seus interesses não foram prejudicados, além de dotá-lo de força executiva.

(…)

Por isso, em nossa visão, o instituto da recuperação judicial deve ser visto com a natureza de um contrato judicial, com feição novativa, realizável através de um plano de recuperação, obedecidas, por parte do devedor, determinadas condições de ordens objetiva e subjetiva para sua implementação.[2]

Para Lídia Valéria Marzagão, “tem-se, portanto, que, não obstante o pedido de recuperação judicial, estar sujeito à direção e homologação da autoridade judiciária competente, a fundamental representatividade e participação dos credores na decisão de aprovação do plano de recuperação da empresa imprime-lhe uma natureza contratual”[3].

O entendimento jurisprudencial sobre o tema é esse já há alguns anos, especialmente no Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, onde o tema é recorrente desde que as grandes companhias passaram a ajuizar pedidos de Recuperação Judicial. O entendimento mais antigo foi localizado no julgamento do Agravo de Instrumento nº 0038422-30.2012.8.26.0000[4], passando pelo recurso nº 2229786-18.2016.8.26.0000[5], ambos da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial.

Prosseguindo, sobre a relação genealógica de contrato e negócio jurídico, Orlando Gomes esclarece que:

Nessa perspectiva, o contrato é uma espécie de negócio jurídico que se distingue, na formação, por exigir a presença pelo menos de duas partes. Contrato é, portanto, negócio jurídico bilateral, ou plurilateral.

Da conexão entre os dois conceitos, o de contrato e o de negócio jurídico, segue-se que o daquele contém todas as características do outro, por ser um conceito derivado. Eis por que as noções comuns a todos os negócios jurídicos, bilaterais ou unilaterais, se estudam na parte geral ou introdutória do Direito Civil naqueles sistemas, como o nosso, em que os conceitos fundamentais da matéria, a exemplo do Código Civil alemão, são sistematizados em artigos que precedem os livros especiais. Onde o negócio jurídico (ato jurídico) não é instituto acolhido no Direito Positivo, a cisão não tem cabimento.[6]

Portanto, fixada a natureza jurídica negocial e contratual do Plano de Recuperação Judicial, é possível partir para um dos pontos centrais do direito contratual: a autonomia da vontade entre as partes.

2. A liberdade de contratação entre as partes e o processo de Recuperação Judicial

Para iniciar o presente tópico, necessário relembrar a lição de Paulo Lôbo, para quem:

A autonomia privada negocial é o poder jurídico conferido pelo direito aos particulares para autorregulamentação de seus interesses, nos limites estabelecidos. O instrumento mediante o qual se concretiza é o negócio jurídico, especialmente o contrato.

Considerado por muitos civilistas um dos princípios fundamentais do direito privado, como diz Karl Larenz, consiste na possibilidade, oferecida e assegurada pelo ordenamento jurídico, de os particulares regularem seus próprios interesses ou suas relações mútuas.[7]

Logo, a autonomia privada decorre do próprio princípio da legalidade, estampado no art. 5º, II, da Constituição Federal, pois o texto constitucional “prevê a liberdade de fazer, a liberdade de atuar ou liberdade de agir, como princípio. Vale dizer, o princípio é o de que todos têm a liberdade de fazer e de não fazer o que bem entender, salvo quando a lei determine em contrário”[8].

Com efeito, se o Plano de Recuperação Judicial tem natureza contratual, ele só encontra limites no próprio ordenamento jurídico, sendo certo que na ausência de norma limitadora, deve prevalecer a autonomia privada, a liberdade de contratar das partes.

Destarte, é possível afirmar que se a Lei n° 11.101/2005 não proibiu que devedoras de um mesmo grupo econômico apresentem um Plano de Recuperação Judicial unificado (forma prescrita ou não defesa em lei), logo, tal hipótese é permitida, como consequência lógica do princípio da autonomia privada.

Aliás, é o que prescreve o art. 425, do Código Civil: “É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código”.

Atualmente, o princípio da autonomia privada encontra seus maiores contornos quando comparado ao princípio da função social do contrato, positivado no art. 421, do Código Civil[9]

Sobre o tema, Teresa Ancona Lopez (citando Miguel Reale) afirma que:

Essa funcionalização surge primeiramente no conceito de propriedade, consagrado no art. 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal de 1988, pois é garantido o direito de propriedade desde que atenda à sua função social. O princípio da função social da propriedade é princípio da ordem econômica (art. 170, III), que, “fundada na valorização do trabalho humano e de livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”, “ora, a realização da função social da propriedade somente se dará se igual princípio for estendido ao contrato, cuja conclusão e exercício não interessa somente às partes contratantes, mas a toda coletividade”.

O fundamento do princípio da função social do contrato é constitucional e somente pode ser entendida tamanha limitação à autonomia privada, princípio básico dos contratos, à luz do texto constitucional.[10]

Logo, a autonomia privada só encontrará respaldo no ordenamento jurídico brasileiro se a propriedade, o contrato e a empresa atenderem a sua função social, ou seja, os interesses juridicamente tutelados deixam de ser meramente individuais/privados e passam a ser coletivos/públicos.

Além dos princípios da autonomia privada e da função social, a Recuperação Judicial encontra seu maior fundamento no princípio da preservação da empresa, positivado no art. 47, da Lei n° 11.101/2005[11].

O princípio da preservação, ao mesmo tempo que reconhece a função social da empresa, ou seja, a sua importância além dos interesses dos sócios, alterou profundamente os paradigmas que até então regiam o regime da insolvência do empresário.

Dessa forma, é pacífico afirmar que o ordenamento jurídico reconhece a empresa como um ativo socioeconômico, onde gravitam múltiplos interesses, tanto públicos como privados, razão pela qual o principal objetivo da recuperação judicial é a manutenção da fonte produtora e a superação da crise que a ameaça. Em outras palavras, hoje em dia, a falência e o concurso de credores são as medidas extremas, a ultima ratio.

Nos julgamentos dos Recursos Especiais nº 1.598.130/RJ e 1.587.559/PR é possível verificar a evolução do entendimento e percepção sobre os processos de Recuperação Judicial e de Falência no país.

Assim, não há dúvidas de que o trinômio autonomia privada – função social – preservação da empresa, sejam os princípios que mais se destacam no instituto da Recuperação Judicial.

3. Litisconsórcio ativo e consolidação substancial

Diante da escassez legislativa e mesmo doutrinária sobre o tema, o Poder Judiciário brasileiro tem exigido das devedoras de um mesmo grupo econômico o preenchimento de certos requisitos, tanto para o litisconsórcio ativo (consolidação processual), como para o Plano de Recuperação Judicial unificado (consolidação substancial).

Mas antes de avaliar os requisitos para a apresentação de um Plano de Recuperação Judicial unificado, é necessário, sem a pretensão de esgotar o assunto, conceituar grupo econômico.

A legislação societária (Lei das S/A e Código Civil) não trata de grupos econômicos ou empresariais propriamente ditos, mas apenas dos grupos societários, como assevera Marcelo Vieira von Adamek:

Apensar de louvável e digna de nota a pioneira iniciativa do legislador pátrio (a ser integralmente creditada ao gênio e ao brilho dos doutos juristas responsáveis pela elaboração do anteprojeto de lei), a disciplina dos grupos apresenta pontos atrofiantes, que até hoje não foram modificados, apesar das várias reformas às quais a Lei das S/A foi submetida. Assim é que, em primeiro lugar, a vigente lei acionária limitou-se a regular os grupos de sociedades, e não os grupos de empresas em geral (ficando, nesse particular, atrás da AktG 1965, a qual admite a formação de grupos de empresas, integrados não somente por sociedades, mas também por empresários individuais e pelo próprio Estado).

(…)

E essa censura continua atual, na medida em que o “novo” Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002), forjado à luz de concepções vigentes no início da segunda metade do século XX, nesse particular muito pouco inovou: apesar de ter introduzido disciplina geral para as sociedades coligadas, limitou-se a apresentar conceitos legais – para sociedades coligadas (CC, art. 1.097), controladas e, a contrario sensu, controladoras (CC, art. 1.098, I e II), bem como de simples participação (CC, art. 1.099). Assim, embora seja certo que tais regras têm aplicação aos grupos não-acionários, a disciplina do Código Civil não representa verdadeiro avanço na matéria tanto mais porque é certo que a sua espartana disciplina continua aplicável somente aos grupos de sociedades, e não de empresas.[12]

Os grupos societários, por sua vez, se dividem em grupo de fato e de direito, como nos explica Rubens Requião:

A lei brasileira, inspirada evidentemente no direito germânico, regula a existência tanto dos grupos de fato como dos grupos de direito.

São grupos de fato as sociedades que mantêm, entre si, laços empresariais através de participação acionária, sem necessidade de se organizarem juridicamente. Relacionam-se segundo o regime legal de sociedades isoladas, sob a forma de coligadas, controladoras e controladas, no sentido de não terem necessidade de maior estrutura organizacional.

Já os grupos de direito, entretanto, importam numa convenção, formalizada no Registro do Comércio, tendo por objeto uma organização composta de companhias, mas com disciplina própria, sendo reconhecidas pelo direito. São por isso grupos de direito.[13]

Porém, o conceito de grupo econômico (ou empresarial) está disciplinado na Consolidação das Leis do Trabalho, no § 2º, do art. 2º, ao estabelecer que, in verbis:

Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas.

Portanto, o conceito de grupo econômico (ou empresarial) trazido pela CLT é mais amplo do que o de grupo societário, disciplinado pela Lei das S/A e pelo Código Civil.

De acordo com Fábio Ulhoa Coelho, nos grupos societários, “cada filiada conserva a sua personalidade jurídica e patrimônio próprios. Não existe solidariedade entre elas, salvo por sanções decorrentes de infração da ordem econômica (Lei n. 8.884/94, art. 17), por obrigações previdenciárias (Lei n. 8.212/91, art. 30, IX) ou trabalhistas (CLT, art. 2º, § 2º)”[14].

Porém, na prática, é comum que os ativos e os passivos de empresas que compõem um mesmo grupo econômico se misturem, de tal modo que o risco de desconsideração da personalidade de uma delas e a extensão dos efeitos patrimoniais às demais seja iminente, justificando não só o litisconsórcio ativo, mas também a elaboração de um Plano de Recuperação Judicial único para todo conglomerado.

Nesse ponto, é importante distinguir a consolidação processual (litisconsórcio ativo) e a consolidação substancial.

Maria Isabel Vergueiro de Almeida Fontana, em dissertação de mestrado apresentada recentemente à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, explica as origens do instituto da consolidação processual:

Consolidação processual advém do termo americano procedural consolidation, que nada mais é do que o processamento conjunto da recuperação judicial das empresas pertencentes ao mesmo grupo de fato ou de direito.

Ou seja, trata-se do deferimento do litisconsórcio ativo daquelas empresas que ingressaram com o pedido de recuperação judicial. Tal processamento conjunto não acarreta necessariamente a união de ativos, unificação de listas de credores e do plano de recuperação judicial.

A consolidação processual não passa de uma medida administrativa que visa à economia processual e à redução de custos, inclusive contribuindo com o sucesso da recuperação judicial.[15]

Em outras palavras, a consolidação processual do Direito norte-americano nada mais é do que o litisconsórcio ativo do Direito brasileiro aplicado à Recuperação Judicial (ou mesmo à Falência). Sendo importante colocar que tais regras estão postas no art. 113 e seguintes do Código de Processo Civil.

Consoante Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, litisconsórcio “é a possibilidade que existe de mais de um litigante figurar em um ou em ambos os polos da relação processual. Caracteriza pluralidade subjetiva da lide. Quando ocorre o litisconsórcio, há cumulação subjetiva de ações”[16].

No que tange à consolidação substancial, trazemos à baila o conceito de Gilberto Deon Corrêa Júnior, segundo o qual:

… é a reunião, para efeitos falimentares, do ativo e do passivo de duas ou mais pessoas.  O patrimônio unificado é tratado como pertencente a uma única pessoa, as diferentes massas são reunidas, pagando- se os credores com o valor apurado na liquidação do ativo integrante dessa massa única. De se observar que a consolidação substantiva não se confunde com a administração conjunta de massas falidas, a qual não altera os direitos subjetivos dos credores e outras partes interessadas. O objetivo aqui é simplesmente evitar gastos desnecessários e a repetição de atos processuais que do contrário teriam que ser realizados em cada um dos procedimentos falimentares. Autorizada a administração conjunta, basta um síndico, por exemplo, e os credores comuns podem fazer apenas uma habilitação. As massas, entretanto, permanecem separadas.[17]

Destarte, podemos afirmar que a diferença entre consolidação processual e substancial reside no fato de que:

A consolidação processual, como se viu, é medida processual cabível em casos em que há realmente a formação de grupo, como forma de contribuir com a celeridade do processo e diminuir custos, além de evitar prolação de decisões incompatíveis.

Contudo, trata-se de medida meramente formal, que não acarreta necessariamente a unificação de ativos e passivos entre as empresas do grupo, uma vez que em respeito à autonomia patrimonial e à conservação das personalidades jurídicas das sociedades, credores e devedores devem ser tratados individualmente, como se fossem processos distintos que apenas tramitam conjuntamente.

Há casos, todavia, que exigem uma unificação material, e não apenas processual, seja em razão de abusos das personalidades jurídicas das sociedades, anteriores ao pedido de recuperação judicial, seja como forma de se superar a crise com mais eficiência.[18]

Denota-se que à mingua de norma que regule a matéria, a jurisprudência tem admitido a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, com espeque no art. 189, da Lei n° 11.101/2005, para permitir tanto consolidação processual e quanto a substancial de grupos econômicos ou societários, indistintamente.

No entanto, a consolidação substancial exige que haja uma confusão patrimonial entre as empresas do mesmo grupo (risco de desconsideração da personalidade jurídica) ou pelo menos solidariedade passiva (legal ou convencional) em obrigações expressivas. Em outras palavras, as dívidas precisam ser de tal monta, que a insolvência as devedoras põem em risco todo o grupo.

Com efeito, não basta que as empresas integrem um mesmo grupo econômico e, ao mesmo tempo, passem por uma crise econômico-financeira. É necessário que as atividades empresariais estejam de tal modo interligadas, que o fracasso de uma selará o destino das demais.

É sabido que no Tribunal de Justiça do Estado de Rio de Janeiro foi entendida a aplicação da consolidação substancial em processos emblemáticos, como os do Grupo Sete e do Grupo Oi. Essa linha seguiu sendo adotada em outros processos em Tribunais pátrios, como os do Grupo Ilmo da Cunha na Bahia e do Grupo Pinesso no Mato Grosso do Sul.

Já em São Paulo, o mesmo entendimento foi aplicado nas Recuperações Judiciais, por exemplo, do Grupo OAS e Grupo Schahin. E, em caso que não havia consolidação processual, foi deferida a substancial ao Grupo Sina em r. decisão que foi mantida pela 1ª Câmara de Direito Empresarial do Egrégio Tribunal de Justiça.

Tecidas tais considerações, abaixo serão colocados breves comentários acerca dos resultados oriundos de todos estudos e entendimentos que foram estabelecidos ao longo dos últimos anos.

4. Os requisitos criados e a sua possível positivação via Projeto de Lei nº 4.458/2020

Após toda a criação e evolução do entendimento doutrinário, acompanhado pela jurisprudência dos Tribunais de Justiça de todo o território nacional, os pontos passaram a ficar mais objetivos, passando a existir a possibilidade de serem criados critérios diretos para que a consolidação substancial seja aplicada ou não ao processo de Recuperação Judicial.

Partindo dessa premissa, é necessário relembrar a decisão proferida pelo Juiz de Direito Daniel Carnio Costa, da 1ª Vara de Recuperações Judiciais e Falências do Foro Central da Comarca da Capital de São Paulo, no processo de Recuperação Judicial do Grupo Urbplan (autos nº 1041383-05.2018.8.26.0100):

Explico.

Se o credor tem o direito de obter a desconsideração da personalidade jurídica para atingir, numa execução contra a devedora, o patrimônio de outra empresa do grupo econômico, é porque estão presentes os requisitos do art. 28 do CDC ou do art. 50 do CCB. Vale dizer, a desconsideração da personalidade jurídica se impõe sempre que a separação patrimonial tiver sido utilizada como forma de fraudar credores. Também se impõe essa desconsideração, como sintoma do abuso da separação patrimonial, sempre que houver uma confusão patrimonial entre a devedora original e a outra empresa do grupo econômico.

Entretanto, numa via inversa (ou no outro lado da moeda) essa devedora que teve reconhecida a confusão patrimonial com a outra empresa do grupo, se ajuizar recuperação judicial, também terá o direito de impor aos credores a consolidação substancial.

Assim, havendo unidade de ações, confusão patrimonial e atuação em bloco no mercado, têm as empresas o direito de opor aos seus credores uma recuperação judicial com consolidação substancial, da mesma forma que seriam atingidas individualmente por dívidas das outras empresas com o reconhecimento da desconsideração da personalidade jurídica.

Esse juízo já fixou os requisitos objetivos exigidos para a excepcional autorização da consolidação substancial na decisão de fls. 4582/4585, quais sejam:

a) interconexão das empresas do grupo econômico;

b) existência de garantias cruzadas entre as empresas do grupo econômico;

c) confusão de patrimônio e de responsabilidade entre as empresas do grupo econômico;

d) atuação conjunta das empresas integrantes do grupo econômico no mercado;

e) existência de coincidência de diretores;

f) existência de coincidência de composição societária;

g) relação de controle e/ou dependência entre as empresas integrantes do grupo econômico;

h) existência de desvio de ativos através de empresas integrantes do grupo econômico.

Não há dúvidas que o comando judicial acima citado se trata de um marco para o tema tratado no presente trabalho, porque a partir dele a aplicação da consolidação substancial (e sua diferenciação para a processual) ficou nítida; existindo, a partir daí, parâmetros para que os demais magistrados pudessem decidir acerca do tema.

Inclusive, outro trecho da referida decisão demonstra com exatidão o motivo pelo qual a aplicação da consolidação substancial é importante para o processo como um todo, afetando de forma positiva todos os envolvidos na demanda e não somente os devedores:

Além da presença desses requisitos objetivos, exige-se, para autorização da consolidação substancial, que o os benefícios sociais e econômicos da recuperação judicial processada em consolidação substancial justifiquem a sua aplicação. Vale dizer, sua aplicação deve ser fundamental para que se consiga manter os benefícios econômicos e sociais que decorrem da preservação da atividade empresarial (empregos, riquezas, produtos, serviços, tributos etc.).

Isso porque, a preservação dos benefícios sociais e econômicos deve prevalecer sobre o interesse particular de credores e devedores. Esse raciocínio de ponderação de valores está, aliás, na base da teoria da divisão equilibrada de ônus na recuperação judicial.

Tanto que, entre as alterações da Lei nº 11.101/2005 constantes no Projeto de Lei nº 4.458/2020, estão presentes as seguintes regras no art. 69-G em diante, com especial atenção, prevista no art. 69-J a possibilidade de ser autorizada a consolidação substancial pelo juiz sem a necessidade de o tema ser objeto de deliberação em Assembleia-Geral de Credores:

Art. 69-J. O juiz poderá, de forma excepcional, independentemente da realização de assembleia geral, autorizar a consolidação substancial de ativos e passivos dos devedores integrantes do mesmo grupo econômico que estejam em recuperação judicial sob consolidação processual, apenas quando constatar a interconexão e a confusão entre ativos ou passivos dos devedores, de modo que não seja possível identificar sua titularidade sem excessivo dispêndio de tempo ou recursos, cumulativamente com a ocorrência de, no mínimo, 2 (duas) das seguintes hipóteses:

I – existência de garantias cruzadas;

II – relação de controle ou de dependência;

III – identidade total ou parcial do quadro societário; e

IV – atuação conjunta no mercado entre os postulantes.

Entre os inúmeros pontos de alteração que o referido Projeto de Lei irá trazer, esse é certamente a concretização das lições doutrinárias e entendimentos jurisprudenciais que foram construídas por todos os operadores do direito que atuam nos processos de insolvência em todo o território nacional.

Conclusão

Como pode ser visto, não é e não foi simples a formação da possibilidade da aplicação da consolidação substancial aos processos de Recuperação Judicial, iniciando pelo fato de que o litisconsórcio é facultativo nessa modalidade de ação e, ainda, pela grande quantidade de incertezas e dúvidas que poderiam ser gerados na prática. Inclusive em relação a como se daria o soerguimento do grupo como um todo e as consequências no caso de um insucesso.

No entanto, após toda a construção feita com base em diversos textos de Lei, incluindo o Código Civil, a Lei das S.A., a Consolidação das Leis do Trabalho, a própria Lei nº 11.101/2005 e os entendimentos criados com base nos casos concretos dos processos de Recuperação Judicial aforados nos últimos anos, foi possível a elaboração de requisitos simples e objetivos para a sua concretização efetiva.

Não há dúvidas que a sua aplicabilidade pode auxiliar no devido procedimento de reestruturação administrativo e financeiro de um grupo econômico, uma vez que tem a capacidade de resolver as lacunas e problemas de todas as sociedades empresárias que o envolvem, impedindo que, no mesmo grupo, existam pessoas jurídicas devidamente saudáveis e outras não; fato que poderia resultar em outra crise financeira, prejudicando o exercício da função social que uma empresa ativa tem.

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[1]    DINIZ, Maria Helena. Direito Civil Brasileiro. Teoria Geral do Direito Civil. 1º Volume. – 22. ed. – São Paulo: Saraiva, 2005, p. 66.

[2]    CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa: O novo regime da insolvência empresarial. – 7. ed. – Rio de Janeiro: Renovar, 2015, pp. 11-13.

[3]    MARZAGÃO, Ligia Valério. A Recuperação Judicial. In MACHADO, Rubens Approbato (coord.), Comentários à Nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas. SP: Ed. Quartier Latin, 2005 págs. 155/156.

[4]    TJSP – 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial – Agravo de Instrumento n° 0038422-30.2012.8.26.0000, Rel. Des. Pereira Calças, j. 02/10/2012.

[5]    TJSP – 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial – Agravo de Instrumento n° 2229786-18.2016.8.26.0000, Rel. Des. Francisco Loureiro, j. 07/06/2017.

[6]    GOMES, Orlando. Contratos. – 26. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2007, pp. 4-5.

[7]    LÔBO, Paulo. Direito civil: contratos – São Paulo: Saraiva, 2011. p. 57.

[8]    DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. – 26. Ed. – São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 235.

[9]    “Dessa forma, a autonomia privada, que é ainda princípio fundamental e gerador dos negócios, sofre hoje limitações não só do Direito Estatal, mas também dos princípios do direito privado, e, em consequência, a interpretação das relações patrimoniais (como de todo Direito Privado) tem que levar em conta valores éticos e sociais, como a boa-fé objetiva e a função social, que vêm sendo chamados de valores existenciais, principalmente pela doutrina italiana”. LOPEZ, Teresa Ancona. Princípios Contratuais. In Contratos empresariais: Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais / Wanderley Fernandes, coordenador. – São Paulo: Saraiva, 2007, p. 11.

[10]  LOPEZ, Teresa Ancona. Princípios Contratuais. In Contratos empresariais: Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais / Wanderley Fernandes, coordenador. – São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 60-61.

[11]  Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

[12]  ADAMEK, Marcelo Vieira von. Responsabilidade civil dos administradores de S/A (e as ações correlatas). – São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 402-403.

[13]  REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. V. 1-2. – 8. ed. – São Paulo, Saraiva, 1977, p. 225.

[14] COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito comercial, volume 2. – 8. ed. – São Paulo: Saraiva, 2005, p. 488.

[15]  FONTANA, Maria Isabel Vergueiro de Almeida. Recuperação judicial de grupos de sociedades. 2016. 115 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016, p. 43.

[16]  NERY JÚNIOR, Nelson; e NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 511.

[17]  CORRÊA JÚNIOR, Gilberto Deon. Consolidação substantiva no Direito norte-americano. Revista da AJURIS, Porto Alegre, n. 73, pp. 319-335, jul./1998.

[18]  FONTANA, Maria Isabel Vergueiro de Almeida. Recuperação judicial de grupos de sociedades. 2016. 115 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016, p. 53.