Desde a revogação do Decreto Lei nº 7.661/1945, com o início da vigência da Lei nº 11.101/2005, foram muitos anos de debates, estudos, processos e recursos, seja pelo lado acadêmico com a enorme produção de conteúdo sobre o tema ou pela parte prática, em razão das incontáveis discussões e teses colocadas para julgamento perante todos os Tribunais de Justiça e o Superior Tribunal de Justiça.
Essa gigante contribuição de todos os operadores do direito geraram muitos especialistas sobre o tema, juristas que realmente atuam diariamente com todas ferramentas jurídicas existentes para a recuperação de empresas (processos de Recuperação Judicial) ou a sua liquidação (processos de Falência), ou seja, existem diversos profissionais extremamente qualificados para serem consultados e opinarem sobre as melhorias/modificações legais que podem existir para aperfeiçoar uma das legislações mais importantes do país.
Quem atua na área sabe da considerável quantidade de discussões que já aconteceram em processos de Recuperação Judicial e Falência, justamente por existirem dispositivos legais com textos que possibilitam diversas interpretações, bem como outros cuja aplicabilidade é extremamente complexa e pode inviabilizar diversas atividades empresárias. São bons exemplos, os anos de recursos interpostos sobre: requisitos para configuração de garantia fiduciária; responsabilidade de coobrigados (geralmente os sócios do devedor principal); a possibilidade de Recuperação Judicial do produtor rural que sempre atuou em sua pessoa física (e depois das associações); a apresentação de CND para homologação de Plano de Recuperação Judicial; a e diversos outros temas que tornariam esse texto muito logo.
É certo que muitos dispositivos legais não foram aplicados de imediato ou tiveram interpretações extensivas, porque a sua criação não tinha qualquer ligação com a realidade do empresariado brasileiro e nem com a evolução necessária das atividades empresárias no país. Isso gerou as discussões acima postas e muitas outras, basta uma pesquisa rápida de jurisprudência nos sites dos tribunais e haverá uma infinidade de decisões e acórdãos completamente divergentes, justamente por existirem anos e anos de discussão.
Mas, aparentemente, além de ignorar a possibilidade de consulta aos especialistas, os proponentes da nova alteração da Lei nº 11.101/2005, também deixaram de considerar a infinidade de novas discussões que podem gerar todos os (impensados e completamente fora de eixo) acréscimos e alterações legais trazidos pelo Projeto de Lei nº 3/2024 que, sem qualquer razão lógica ou técnica, foi tratado em regime de urgência e aprovado pela Câmara dos Deputados em dois dias.
Além da irrelevância dos temas debatidos, em relação ao que realmente poderia ser efetivamente alterado na legislação falimentar para a melhora do sistema de insolvência, chama atenção que, na exposição de motivos do “PL”, um dos seus objetivos é a “moralização do instituto”. Aí fica a questão: o que eles pretendem moralizar?
Para tanto, vale a pena rememorar os principais pontos de alteração: (i) maiores funções ao Administrador Judicial e, concomitantemente, criação de limitação de sua remuneração e de suas nomeações (sem contar a sua substituição no caso de não encerramento do processo em até 3 anos); (ii) a colocação da posição do gestor fiduciário, que pode substituir o Administrador Judicial em processos de falência, com o intuito de “auxiliar” os credores; (iii) “regulamentação” do plano de falência; e (iv) a retirada de créditos em caso de existir um segundo pedido de Recuperação Judicial da mesma empresa.
Logo, em breve resumo, se exigiu a especialização por anos de um dos agentes mais importantes e agora que muitas inovações e melhorias foram implementadas, há um notório ataque aos auxiliares do juízo; houve a invenção de um cargo que nada mudará na prática para melhor, afinal a substituição por deliberação dos credores, além de ineficaz, pode tornar o processo moroso e de acordo com o interesse de poucos em detrimento da coletividade; e, para melhorar tudo, o empresário brasileiro tem direito de errar apenas uma vez agora, senão não poderá mais renegociar as suas dívidas.
E não é possível deixar passar a ilegal usurpação de competência do juiz natural: de acordo com o Projeto de Lei nº 3/2024, todos os incidentes de desconsideração da personalidade jurídicas contra sócios e demais responsáveis pela empresa devedora deverão ser “decididos exclusivamente pelo juízo falimentar competente”, inclusive determinando a imediata remessa dos que não foram julgados, no estado que estejam. Vejam, agora o credor vai começar a execução em um lugar e pode finalizar em outro; sem mencionar que os anos de luta para a especialização dos magistrados terão sido, parcialmente, em vão, porque decidirão diversos processos que não são do rito da Lei nº 11.101/2005.
Com uma análise bem técnica e detalhada, se faz um pequeno livro ou, ao menos, uma monografia sobre a quantidade de problemas e desconexões que as alterações propostas podem causar em todo os processos de reestruturação e liquidação de empresas no país.
De fato, quem escreveu e pensou no conteúdo do Projeto de Lei nunca viu um processo de Recuperação Judicial ou Falência na prática (e pode nem ser a sua obrigação direta, mas seria prudente consultar quem participa ativamente) e, infelizmente, conseguiu seu trâmite célere para uma aprovação meteórica na Câmara dos Deputados. É até difícil de acreditar, pautado no bom senso, que uma legislação que interfere na economia do país de forma tão sensível tenha tido propostas tão absurdas aprovas em um espaço de tempo que mal se iniciaria a discussão da alteração de um dos seus dispositivos.
E são por esses motivos e outros inúmeros, que podem ficar para futuros textos, que nos resta atuar com diligência e torcer para que a luz da prudência recaia sobre o Senado Federal, de modo que o Projeto de Lei nº 3/2024 seja negado em sua integralidade ou, pelo menos, na maioria do seu conteúdo. Do contrário, retornaremos para 1945 imediatamente.
Yuri Gallinari de Morais. Advogado. Sócio fundador do Yuri Gallinari Advogados. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Pós-Graduado em Recuperação de Empresas e Falências pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo – FADISP. Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCCAMP. E-mail: yuri@ygadv.com.br