Quem acompanha a evolução da previsão legal e do entendimento jurisprudencial envolvendo a Recuperação Judicial para o produtor rural sabe como foram complexos e demorados os embates que viabilizaram a utilização do instituto: anos de discussões perante os Tribunais de Justiça Estaduais e o Superior Tribunal de Justiça para que fosse possível chegar a uma definição.
Inicialmente, o entendimento era de que o produtor sequer se enquadrava como empresário, uma vez que a grande maioria realizava negócios enquanto pessoa física e, para realizar o seu pedido de Recuperação Judicial realizava seu registro na Junta Comercial do seu Estado como empresário individual de responsabilidade ilimitada. Então, a alegação que predominou foi que o registro não tinha os dois anos necessários, em detrimento a regra do art. 48, caput, da Lei nº 11.101/2005.
Após o Superior Tribunal de Justiça definir sobre a desnecessidade do registro ter o lapso temporal em questão[1], levantaram outra questão: se as dívidas haviam sido contratadas pelo produtor enquanto pessoa física, não podiam ser reestruturadas por ele como empresário individual, sob pena de gerar insegurança jurídica. Mais alguns anos de discussões em diversos processos, com exceção dos tramitando no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que passou a decidir de forma favorável para permitir a inclusão de tais créditos.
Porém, novamente o tema foi levado para Brasília. E, quando do julgamento do Recurso Especial nº 1.800.032/MT, foi definida a possibilidade de os créditos contraídos pelo CPF serem inseridos no pedido de Recuperação Judicial, principalmente pelo fato de a responsabilidade do empresário individual ser ilimitada e, portanto, ter evidente confusão patrimonial (fato que era alegado, inclusive, para viabilizar a cobrança em ações de execuções, monitórias e cobranças).
Quando tudo pareceu se assentar, a Lei nº 11.101/2005 sofreu alterações, advindas da Lei nº 14.112/2020. Nesse texto legal, restou permitida a possibilidade de o produtor rural pedir Recuperação Judicial, conforme é determinado na atual regra do art. 48, §3º, contanto que preenchidos os requisitos comprovados pelo Livro Caixa Digital do Produtor Rural.
Porém, outro dispositivo legal praticamente inutilizou o instituto para essa classe, que produz recursos que representam um terço do PIB nacional: o art. 49, §7º acabou por prever que: “não se sujeitarão aos efeitos da recuperação judicial os recursos controlados e abrangidos nos termos dos arts. 14 e 21 da Lei nº 4.829, de 5 de novembro de 1965”. São os créditos oriundos de fomentos via Cédula de Produto Rural.
Ora, sem a possibilidade de renegociar justamente os valores que foram tomados para tornar a atividade empresária viável, produtiva e rentável, qual o sentido de utilizar a Recuperação Judicial para os atuantes no agronegócio brasileiro? Novamente o legislador possibilitou incontáveis discussões jurídicas entre devedores e credores em todos os Tribunais Estaduais, até que o tema volte ao Superior Tribunal de Justiça novamente.
Isso porque esse dispositivo se choca com o seu parágrafo anterior. O art. 49, §6º coloca que: “nas hipóteses de que tratam os §§ 2º e 3º desta Lei, somente estarão sujeitos à recuperação judicial os créditos que decorram exclusivamente da atividade rural e estejam discriminados nos documentos a que se referem os citados parágrafos, ainda que não vencidos”.
E, para completar, o art. 49, §8º define: “estarão sujeitos à recuperação judicial de que trata o §7º deste artigo que não tenham sido objeto de renegociação entre o devedor e a instituição financeira antes do pedido de recuperação judicial, na forma de ato do Poder Executivo.”
Os parágrafos do mesmo dispositivo legal se contradizem, porque se todos os créditos que são oriundos da atividade rural – desde que declarados contabilmente (ligando com o art. 48, §3º) – se sujeitam ao pedido de Recuperação Judicial. Retirar a relevante fonte de fomento à atividade, acaba retirando a credibilidade do próprio texto criado pelo legislador. Acaba perdendo o sentido em sua própria interpretação literal.
Afinal, o intuito da inserção dos dispositivos legais mencionados é justamente conceder a possibilidade do empresário rural, que atua de forma regular, circulando bens e mercadorias, utilizar os benefícios de tal instituto criado para a reestruturação da sua atividade.
Até porque, importante relembrar que, quando do julgamento do aludido Recurso nº 1.800.032/MT, foi decidido que o objetivo da inserção das dívidas seria justamente viabilizar a renegociação do passivo constituído estritamente constituído para o exercício da atividade rural[2].
Para exemplificar: se o contrato tem como objetivo o fomento da atividade agrícola, fornecimento de linha de crédito para aquisição de insumos, maquinários e etc, não há por que não se sujeitar ao processo de recuperação judicial do produtor rural, em respeito ao artigo 49, §6º.
Dessa forma, é certo que, com base na própria alteração da Lei, que não se mostrou objetiva sobre o tema em questão, novamente serão levantadas novas teses para poder ser promovida a Recuperação Judicial ao empresário que contribui a um dos setores com maior representatividade econômico-financeira em nosso país e que se mantém – e se manteve – nos piores momentos de crise já ultrapassados.
Yuri Gallinari de Morais. Sócio-Fundador do Yuri Gallinari Advogados. Especialista em Recuperação Judicial e Falência pela Faculdade de Direito Autônoma de São Paulo (FADISP) e em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP). Pós-Graduando em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Membro da Comissão de Estudos de Falência e Recuperação Judicial da OAB/SP, Subseção de Campinas/SP.
[1] Julgamento do Recurso Especial nº 1.193.115/MT
[2] A maioria dos integrantes da eg. Quarta Turma compreendeu que a interpretação da legislação debatida assegura ao produtor rural, após inscrito no registro de empresas mercantis, o direito de incluir na recuperação judicial os créditos constituídos anteriormente ao registro como empresário, que não tenham sido quitados e decorram da atividade econômica rural, o que, de forma alguma, pode ser qualificado como deslealdade contratual ou má-fé, dada a sua condição preexistente de empresário regular, não sujeito a registro” (EDs no REsp nº 1.800.032-MT, Min. Rel. Raul Araújo, Julgamento em 29.06.2020.