O Projeto de Lei nº 3/2024 de autoria da Deputada Federal Dani Cunha, apresentado em 10.01.2024, tem resultado em inúmeros comentários dentre a comunidade de juristas e advogados que atuam no direito da insolvência, especialmente com processos de Recuperação Judicial e Falência.
A proposta veio em regime de urgência, com o suposto objetivo de “ampliar a participação dos credores, tornando-os protagonistas do processo, pois são eles os maiores interessados na liquidação eficiente dos ativos. Ainda, tem o objetivo de tornar o processo de falência mais célere e efetivo, ampliando a taxa de recuperação de créditos e mitigando os riscos de perdas a todos os envolvidos, permitindo que os ativos produtivos sejam realocados ao seu melhor uso”.
O primeiro comentário que se vem fazendo, e causa extremo espanto, é que nenhum jurista ou advogado especialista da área foi chamado para participar do projeto, totalmente diferente da Lei nº 14.112/2020 que alterou a Lei nº 11.101/2005.
Mas afinal, quais são as mudanças? Em linhas gerais, temos que ao Administrador Judicial foi atribuído maiores poderes na falência (desde apresentar plano de falência, avaliação de bens de forma técnica e fundamentada, apresentar a liquidação da venda no prazo de 180 dias ou conforme o plano de falência, sob pena de destituição, dentre demais funções que exigem toda uma complexidade) e, ao mesmo tempo, sendo o orçamento destinado à remuneração do Administrador Judicial reduzido e com tempo de nomeação limitado.
Criou-se critério de orçamentos e houve uma previsão de redução escalonada do percentual máximo de remuneração total possível de administradores e equipes, conforme maior seja o valor da falência (critério de valores pagos aos credores) ou da recuperação judicial (critério de valor do plano de recuperação), com manutenção de limite máximo, em qualquer caso, de 5% sobre planos ou pagamentos de até 50.000 (cinquenta mil) salários-mínimos. Os demais patamares de remuneração são: (i) 4% entre 50.000 (cinquenta mil) e 100.000 (cem mil); (ii) 3% entre 100.000 (cem mil) e 300.000 (trezentos mil) salários-mínimos; e (iii) 2% acima de 300.000 (trezentos mil).
Veja ainda que houve a fixação de bases de cálculo da remuneração variável diversas para os administradores de Recuperações Judiciais ou Falências, considerando-se que as realidades são substancialmente diversas para essas diferentes hipóteses.
No caso das Recuperações Judiciais, preserva-se a base de cálculo sobre os valores das dívidas novadas nos Planos de Recuperação Judicial, o que mantém um critério que já funcional e aceito. Já nas falências, prevê-se a incidência da remuneração variável sobre os valores efetivamente pagos aos credores.
A primeira reflexão que se faz: é justo o administrador judicial ter sua função aumentada, com maior responsabilidade e receber remuneração menor? Além do mais, há o risco sistêmico de haver a sua troca a cada dois anos, bem como a limitação de haver duas nomeações por vara concomitantemente. Não se faz necessária nenhuma análise profunda para concluir que não existem Administradores Judiciais suficientes para o cumprimento de tal regra.
Houve aparecimento de gestor fiduciário que terá quase os mesmos “poderes” de um Administrador Judicial, com uma significativa diferença: o Administrador Judicial é alguém nomeado pelo juiz, totalmente imparcial. Já o gestor fiduciário o projeto deixa de conceituar o que seria, bem como qual a finalidade da sua instituição e passa a discorrer de forma deslocada sobre as suas funções, simplesmente afirmando que as disposições relativas ao administrador judicial àquele se aplicam.
Ainda, o projeto do texto normativo define que a nomeação do gestor ocorrerá caso a Assembleia Geral de Credores (AGC) da falência assim entenda como necessária – aqui vale salientar que a escolha será pela proporção dos créditos -, direcionando para este seleto grupo o método de escolha do principal auxiliar do Juízo no feito falimentar, já que o projeto passa a prever que a nomeação do Administrador Judicial, com a quebra, dar-se-á a título provisório – com mandato até 3 (três) anos.
Uma vez nomeado, caberá ao administrador judicial a elaboração da relação de credores e dos atos urgentes até a convocação da AGC, na qual poderá ser eleita a figura do gestor fiduciário, que o substituirá (artigo 22, §6º, da redação do projeto).
Além disso, o próprio método de eleição/remuneração do gestor parece, ao que indica o artigo 42 do referido projeto, estar apenas submetido a um critério de votação no qual um credor majoritário — ou eventualmente um grupo de credores unidos que alcance o referido montante- possa definir, quase que unilateralmente, os rumos da falência.
Pode-se verificar que o projeto não prevê nenhuma possibilidade de que o Juízo efetue um eventual controle de conflitos de interesse entre o gestor e os credores, o que enfraquece as salvaguardas do sistema falimentar.
Ainda, restou consignado que o plano de falência não estará sujeito ao consentimento do falido, ou dos seus sócios, apenas de o valor do ativo for superior ao passivo. Isso não seria uma forma de impedir o acesso à defesa do Falido, previsto na regra do art. 82, C, §5? Ele perdeu o direito de qualquer argumentação sobre a sua empresa e respectivos direitos? E se no Plano de Falência houver uma extensão ao patrimônio da pessoa física? Ou algo que lhe prejudique em eventuais direitos creditórios? Há apenas uma previsão de que o falido e os credores poderiam arguir sobre o plano de falência apresentado pelo Ilmo. Administrador Judicial ou Gestor Fiduciário, entre elas: o não cumprimento do quórum de aprovação, as irregularidades ao termo de adesão, irregularidades e ilegalidades ao plano de falência, hipóteses genéricas que não ficaram claras sobre como serão aderidas pelo Juiz, Administrador Judicial ou até mesmo o Gestor Fiduciário.
Ainda veja que haverá possibilidade de modificar/atualizar a proposta apresentada pelo plano de falência a requerimento sempre do Administrador Judicial, Gestor Fiduciário ou dos Credores que representem no mínimo 25% total dos créditos. Fazendo uma reflexão, um credor trabalhista, em processo de falência, consegue acompanhar esse rateio ou será “engolido” por uma proposta descabida de compra de crédito, sendo ofertado 10% do seu crédito para que ele venda e assim, saia do processo de falência? Quem regulamentará isso? O Administrador Judicial? Ou Gestor Fiduciário?
Além disso, o PL propõe que em nova recuperação judicial (art. 49), não são passíveis de serem incluídos, mesmo que não vencidos, qualquer crédito formado ou novado que advenha de recuperação judicial anterior. Ora, esse artigo restringe a possibilidade de uma nova recuperação judicial, mesmo que de forma mascarada. A crise administrativa e financeira só pode existir uma vez, o empresário – além de todos os ônus de sua atuação – está voltado a um único erro na sua carreira, no segundo as portas do Poder Judiciário se fecham.
Prosseguindo, há mais uma problemática instaurada: não estarão sujeitos contratos e obrigações decorrentes de atos cooperativos à Recuperação Judicial (art. 49, §11º da Lei nº 11.101/2005). E a recuperação judicial do produtor rural que em sua maioria tem grandes cooperativas? Vamos trazer novamente essa discussão de qual crédito se submete à recuperação judicial ou não?
Sobre a desconsideração da personalidade jurídica (art. 28 da Lei nº 11.101/2005), ficou ajustado que somente o juiz competente da recuperação judicial ou falimentar, poderá deliberar sobre o tema. O que é um ponto positivo, afinal, o magistrado que conduz a recuperação judicial ou a falência são os mais competentes e que tem a noção detalhada do caso, condução dos empresários e etc.
De forma geral e breve, percebe-se que houve uma desnecessária celeridade para a tramitação deste projeto com a redação deficitária como esta proposta, sem o devido aprofundamento da matéria, principalmente considerando que sequer inexistem posições sólidas sobre a última alteração legislativa, o que poderia ocorrer através de discussões com setores específicos da comunidade e a consequente adição de posições já consolidadas, permitindo-se a propositura de um texto legal que represente o anseio da sociedade e não o direcionamento para que se contemple interesses individualizados em um processo coletivo.
Nathália Albuquerque Lacorte Borelli. Advogada formada pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCCAMP. Pós-graduada em Gestão e Estratégia Empresarial na Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Pós-graduada em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Membro da Comissão de Estudos em Falência e Recuperação Judicial da OAB/ Campinas. Membro do Centro de Mulheres na Reestruturação Empresarial – CMR. Membro da IWIRC – Brasil. Membro da Comissão de Direito Bancário – nathalia@ygadv.com.br