Mesmo após quase vinte anos de vigência da Lei nº 11.101/2005, com uma alteração relevante ocorrida recentemente em diversos dispositivos legais, o que mostra o aumento da sua utilização e, consequentemente, de agentes que promovem a sua interpretação e a estudam; ainda, existem partes que ignoram a sua existência e participam dos processos falimentares visando seu próprio interesse.
Essa situação ocorre especialmente com credores cujos créditos dominam todo e qualquer cenário de aprovação do Plano de Recuperação Judicial, ou seja, pessoas que conseguem determinar o futuro da companhia devedora sem importar qual é o projeto de soerguimento ou proposta de pagamento a ser válida para todos os demais.
É certo que com menor frequência do que antigamente, ainda existem credores (ou representantes desses) que se negam a negociar e, mesmo em um cenário, que praticamente todos os outros aprovam a forma e meio de quitação propostos, bem como o planejamento de reestruturação, continuam apenas se posicionando – sem qualquer justificativa ou até mesmo demonstrando alguma rusga pessoal ou sem nenhuma análise técnica – contrariamente a tudo.
E o fazem porque sabem que, em muitas vezes, sequer a aplicação do cram down, prevista na regra do art. 58, §1º da Lei nº 11.101/2005[1], é cabível com o seu voto contrário, uma vez que sozinho, tem representatividade muito alta no processo. E, ainda, com a mencionada alteração da legislação, quando é aberta a votação para apresentação de Plano de Recuperação Judicial pelos credores (art. 56, §1º), a ausência de interesse permanece, e o credor segue votando de forma contrária.
Por esse motivo, existindo casos como esses na prática, os Tribunais de Justiça vêm relativizando até as regras do cram down, se necessário, ou até mesmo reconhecendo a abusividade de voto de tais agentes, porque fica notório que sem a sua participação, há resultado de aceitação massiva sobre a aprovação do Plano de Recuperação Judicial.
É o caso, por exemplo, dos Agravos de Instrumento nº 2091520-41.2022.8.26.0000[2] e 2219380-59.2021.8.26.0000[3], que, respectivamente, reconheceu o abuso do direito de voto e mitigou os requisitos para a aplicação do cram down. Demonstrando que o Poder Judiciário está atento a esses casos, não podendo toda uma coletividade de interessados na manutenção da atividade empresária perder o seu direito em razão do comportamento irrazoável de apenas uma pessoa.
É por isso que, nessa linha, sempre que houver a atuação em processos de reestruturação, seja pelo credor ou pelo devedor, os responsáveis devem sempre agir de acordo com a boa-fé e a razoabilidade dentro das suas respectivas possibilidades; levar a questão para cunho pessoal ou sem o viés técnico jurídico ou financeiro que se fazem necessários podem acarretar na nulidade dos atos praticados.
Yuri Gallinari de Morais. Advogado. Sócio-Fundador do Yuri Gallinari Advogados. Especialista em Recuperação Judicial e Falência pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (FADISP). Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP). Especializando em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Contato: yuri@ygadv.com.br
[1] Art. 58. Cumpridas as exigências desta Lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor cujo plano não tenha sofrido objeção de credor nos termos do art. 55 desta Lei ou tenha sido aprovado pela assembleia-geral de credores na forma dos arts. 45 ou 56-A desta Lei.
§ 1º O juiz poderá conceder a recuperação judicial com base em plano que não obteve aprovação na forma do art. 45 desta Lei, desde que, na mesma assembléia, tenha obtido, de forma cumulativa:
I – o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembléia, independentemente de classes;
II – a aprovação de 3 (três) das classes de credores ou, caso haja somente 3 (três) classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 2 (duas) das classes ou, caso haja somente 2 (duas) classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 1 (uma) delas, sempre nos termos do art. 45 desta Lei;
III – na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores, computados na forma dos §§ 1º e 2º do art. 45 desta Lei.
[2] “AGRAVO DE INSTRUMENTO – RECUPERAÇÃO JUDICIAL – Decisão que homologou o plano apreciado pela Assembleia geral de Credores, concedendo a recuperação à agravada – Alegação de impossibilidade de aprovação pelo quórum alternativo previsto no art. 58 da Lei 11.101/05 – Relativização da regra constante no inciso III do indigitado artigo admissível em casos como o dos autos – Hipótese em que o banco agravante é o único credor a discordar da aprovação do plano – Ausente justificativa razoável para divergência do plano – Casa bancária manifestamente refratária a qualquer renegociação em seu crédito – Abuso do direito configurado – Concessão da recuperação mantida, porém pelo quórum ordinário do art. 45 da lei de regência, sem a necessidade de “cram down”- Recurso improvido.”
(TJSP; Agravo de Instrumento 2091520-41.2022.8.26.0000; Relator (a): J. B. Franco de Godoi; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Franca – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 03/03/2023; Data de Registro: 06/03/2023)
[3] Recuperação judicial – Aditivo a plano de recuperação judicial apresentado em assembleia – Homologação realizada com fulcro no artigo 58, §1º da Lei 11.101/2005 (“Cram down”) – Relativização – Longevidade do procedimento concursal somada à expressiva concordância dos credores presentes ao conclave e componentes das Classes I, III e IV – Diferença final inferior a meio por cento em valores totais de créditos – Possibilidade da excepcional mitigação dos requisitos do “cram down”, visando a preservação da empresa – Previsão de “leilão reverso” – Cabimento – Procedimento de caráter objetivo, que não induz violação ao princípio da “par condictio creditorum” – Falta, porém, de plena liquidez do aditivo – Ausência de fixação de data para pagamento, ficando toda quitação dos débitos na dependência da venda dos imóveis – Homologação revogada – Determinação de apresentação de um novo aditivo e a reconvocação de assembleia, superando a invalidade constatada – Decisão reformada – Recurso provido.
(TJSP; Agravo de Instrumento 2219380-59.2021.8.26.0000; Relator (a): Fortes Barbosa; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 13/12/2021; Data de Registro: 13/12/2021)