O direito à alimentação do menor, consagrado como garantia fundamental no ordenamento jurídico brasileiro, pode se sobrepor ao sigilo fiscal e bancário do alimentante. Essa foi a orientação reafirmada pela Terceira Turma do C. Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 2.126.879/SP[1].
No caso, discutia-se a possibilidade de quebra do sigilo bancário e fiscal do alimentante, em razão da controvérsia que girava em torno da real capacidade financeira do genitor, questionada em Ação de Alimentos proposta em favor de seu filho menor. Apesar de o alimentante alegar já ter comprovado sua renda por meio documental, o STJ entendeu que os indícios de renda subnotificada e patrimônio oculto justificavam a medida excepcional.
O voto do relator, Ministro Moura Ribeiro, foi enfático ao destacar que o sigilo fiscal e bancário, embora protegido constitucionalmente, não é absoluto. Diante de interesses igualmente relevantes — como o direito à vida, à dignidade e à alimentação do menor — o Judiciário deve realizar uma ponderação de princípios. Nesse cenário, a proteção integral e prioritária da criança se impõe.
Abaixo, trecho do voto do Ilustre Ministro:
“Como se vê, o acórdão recorrido assinalou que o direito ao sigilo fiscal e bancário não é absoluto, devendo ceder quando houver outro interesse relevante e fundamental, como o direito aos alimentos do filho do recorrente, que é menor. Acrescentou, ainda, que os elementos fáticos e probatórios dos autos indicavam que havia fundada controvérsia a respeito da real capacidade financeira de P. e, por isso, a medida excepcional seria necessária para estabelecer a verdade real sobre os seus ganhos mensais para que fosse possível fixar um valor justo e adequado dos alimentos. Verifica-se que essa “fundada controvérsia” afirmada pelo v. acórdão, no meu sentir, bastava para autorizar a investigação mais aprofundada das condições ou das possibilidades econômicas do alimentante, considerando o seu nebuloso contexto socioeconômico. (…) Nessa linha de raciocínio, entendo que a quebra do sigilo fiscal e bancário em ação de alimentos pode ser autorizada em situações excepcionais, quando as provas existentes nos autos relativas à real capacidade econômico-financeira do alimentante forem insuficientes e não houver outro meio para apurá-la. Nesses casos, o direito à dignidade e à sobrevivência do alimentando se sobrepõe ao da privacidade do alimentante. Assim, pode-se afirmar que existindo embate entre os princípios da inviolabilidade fiscal e bancária e o direito alimentar, como corolário da proteção à vida e à sobrevivência digna dos alimentados incapazes, impõe-se, em juízo de poderação, a prevalência da norma fundamental de proteção aos relevantes interesses dos menores.
O acórdão enfatiza que, na ausência de outros meios eficazes para aferição da real capacidade econômica do alimentante, a quebra de sigilo é medida legítima e proporcional. A jurisprudência do STJ, inclusive, já consolidou o entendimento de que, havendo sinais exteriores de riqueza incompatíveis com os rendimentos declarados, é cabível o aprofundamento investigativo, ainda que isso implique mitigar garantias de privacidade, uma vez que o direito do alimentado, se sobrepõe ao direito ao sigilo fiscal do alimentante.
A decisão do STJ reafirma o compromisso do Judiciário com a proteção dos vulneráveis, demonstrando que o sigilo fiscal não pode ser utilizado como escudo para a inadimplência ou a ocultação de patrimônio. Em litígios envolvendo alimentos, o interesse do alimentado deve prevalecer sobre o direito do alimentante à privacidade patrimonial — sempre com a devida fundamentação e observância do contraditório.
Ana Julia Morgado, advogada formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, com atuação nas áreas cível, empresarial e relações de consumo, membro da Comissão de Estudos em Falência e Recuperação Judicial da OAB Campinas/SP, contato: ajulia@ygadv.com.br
[1] Ementa: “CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. AÇÃO DE OFERTA DE ALIMENTOS. DEFERIMENTO DA QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO E FISCAL DO ALIMENTANTE. AGRAVO DE INSTRUMENTO IMPROVIDO. CONCLUSÃO PELA NECESSIDADE DA MEDIDA DEVIDO A FUNDADA CONTROVÉRSIA A RESPEITO DA CAPACIDADE FINANCEIRA DO ALIMENTANTE. POSSIBILIDADE EXCEPCIONAL DE DEFERIMENTO DA MEDIDA. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. 1. Recurso especial interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo que manteve decisão de primeiro grau, deferindo a quebra de sigilo fiscal e bancário do alimentante em ação de oferta de alimentos, para apurar a sua real capacidade financeira. 2. O alimentante, diretor e sócio de empresa de locação de automóveis, contestou a decisão alegando que a medida é excepcional e que sua capacidade financeira já está comprovada nos autos, não havendo necessidade da quebra do seu sigilo. 3. A questão em discussão consiste em saber se é possível deferir a quebra do sigilo fiscal e bancário do alimentante em ação de oferta alimentos, para aferir sua real capacidade de prestar alimentos ao filho menor. 4. O direito ao sigilo fiscal e bancário não é absoluto e pode ser relativizado quando houver outro interesse relevante, como o direito à alimentação do filho menor. 5. A medida excepcional de quebra de sigilo fiscal e bancário em ação de oferta de alimentos é justificada quando, diante dos elementos do caso concreto, não houver outro meio idôneo de se obter mais informações a respeito da real condição financeira. 6. Havendo embate entre os princípios da inviolabilidade fiscal e bancária e o direito alimentar, como corolário da proteção à vida e à sobrevivência digna dos alimentados incapazes, impõe-se, em juízo de poderação, a prevalência da norma fundamental aos relevantes interesses dos menores. 7. A reanálise acerca da suficiência da comprovação da capacidade financeira do alimentante nos autos demandaria, necessariamente, o reexame do acervo fático-probatório dos autos, providência vedada pelo óbice da Súmula nº 7 do STJ. 8. Recurso especial improvido.”